A VIDA DOS LIVROS
De 3 a 9 de Março de 2008
“Garrett e os Estados Unidos da América” de Duarte Ivo Cruz (Civilização Editora, 2007) é o resultado de uma interessante e útil investigação sobre aspectos da vida do grande escritor português do século XIX, enquanto diplomata e arguto intelectual, bem consciente dos grandes problemas do seu tempo. Ivo Cruz fala-nos, por isso, muito justamente, de uma “inteligência visionária”, já conhecida em muitos dos textos e reflexões de Garrett, mas que fica ainda mais evidente nos temas a que esta obra se reporta. Se os críticos do polígrafo oitocentista se têm preocupado em invocar tantas vezes a frivolidade da personagem teatral que ele foi, a verdade é que se torna impossível, para quem se debruce sobre a vida do homem e do artista, deixar de reconhecer o seu enorme talento, a sua grande inteligência e sobretudo a sua capacidade de ver para além das imediatas aparências.
Almeida Garrett (1799-1854).
UMA VIDA PLENA…
“Em Garrett (diz Duarte Ivo Cruz) não se pode distinguir com rigor o homem público do artista criador: ambos se fundem e misturam numa mesma personalidade e numa mesma mentalidade extremamente rica, densa e profunda e no fundo coerente na dispersão e aparente paradoxo que tantas vezes parece assumir”. A cada passo, na procura da pessoa que foi Garrett, descobrimos o entrecruzar das diferentes vocações, de quem, com Herculano (apesar das muitas diferenças entre ambos), foi responsável por lançar as bases de um Portugal moderno e aberto, cosmopolita e liberal, consciente das suas raízes e tradições e aspirando a trilhar caminhos de mudança, de acordo com as tendências culturais e artísticas mais modernas. Basta ler a obra que nos legou, multifacetada e riquíssima, para percebermos que o seu romantismo não é escolástico e que a sua escrita, sobretudo em “Viagens na Minha Terra”, corresponde a uma autêntica revolução, indo ao encontro da fala quotidiana, sabendo aliar a correcção erudita à força vital da espontaneidade. Enquanto em Herculano sentimos ainda o peso e a intensidade da escrita clássica, em Garrett, certamente por força da sua sensibilidade teatral e dramatúrgica (que Duarte Ivo Cruz bem conhece), nota-se a agilidade própria de uma escrita que se liga à capacidade mais imediata de comunicar. E se esta questão aqui é posta, tal deve-se ao facto de Almeida Garrett ser um homem que entendeu inteligentemente o seu tempo, nos seus diversos pormenores, desde a linguagem quotidiana à compreensão das grandes tendências internacionais, mas também relativas ao pensamento. E assim pôde ser fino jurista, ao lado de Mouzinho da Silveira; arguto político e administrador, na criação do Conservatório e do Teatro Nacional ou no lançamento das bases de uma política nova na instrução pública, e diplomata distinto e hábil diplomata na negociação do tratado de navegação e comércio com os EUA de 26 de Agosto de 1840… Tudo isto para além de ter sido fundador de um novo teatro português e de ter sido poeta e prosador de primeiríssima água.
VER A GLOBALIDADE
Ao analisar o contexto internacional, Garrett demonstra compreender com exactidão o lugar que os Estados Unidos irão desempenhar no futuro. E, dez anos antes de Tocqueville, vê as virtualidades da nova mentalidade e do influxo de uma comunidade enriquecida pela convergência da emigração. “Auxiliada da poderosa e benéfica influência do cristianismo, a liberdade triunfou no novo mundo” – diz-nos Garrett. “A sua vitória custou muito sangue, mas não deixou remorso aos triunfadores: não foram eles que provocaram a peleja. Quebrado o jugo do governo opressor, os Americanos trataram de se ligar por um pacto que não fosse oneroso para os governados, e segurasse suficiente força aos governantes”. A ideia de emancipação pela liberdade surge, deste modo, muito claramente referenciada, considerando o escritor que se assistia à criação de condições para uma profunda alteração de circunstâncias no mundo da altura. “E então (acrescenta Garrett) resolveram eles o que até ali se julgava insolúvel problema: quero dizer, o método de estabelecer permanentemente uma república em um território vasto e no actual estado de nossos costumes, usos e abusos, de nossa política, de nossa religião”. E, naturalmente, Garrett põe a pergunta óbvia: “Porque não tomaremos nós o exemplo dos Americanos? Porque não havemos nós de conquistar também a liberdade para sermos como eles felizes?”. Com uma especial sensibilidade para o relacionamento entre a economia e a política, faz a comparação entre a Europa e a América, salientando no velho continente “as classes inúteis poderosas e propagadas” e o “fanatismo valente ainda”. E fácil é de perceber como Garrett pretende em “Portugal na Balança da Europa” sensibilizar para um futuro que teria de se moldar, já não a partir da experiência europeia, fechada sobre si mesma, mas considerando que a mentalidade americana e as novas circunstâncias aí preparadas e concretizadas dariam origem a um tempo em que a liberdade e o anseio de felicidade dominariam…
A BOCA DE CENA
Não podemos deixar de encontrar “conotações teatrais” nas preocupações políticas de Garrett. Uma “visão moderna, liberal e economicista percorre toda a dramaturgia de Garrett, mesmo nas peças históricas, onde não teria cabimento”. No prefácio a “Um Auto de Gil Vicente” escreveu o homem de teatro: “em Portugal nunca chegou a haver teatro, o que se chama teatro nacional, nunca (…). O teatro é um grande meio de civilização, mas não prospera onde não há. Não têm procura os seus produtos, enquanto o gosto não formar os hábitos e com eles a necessidade. Para principiar, pois, é mister criar um mercado fictício”. Assim, a propósito do teatro, o que importaria salientar seria que a vida e a ciência económicas não poderiam ser esquecidas ou subalternizadas. Haveria, por isso, que considerar a liberdade económica inserida na complexidade do mercado e da sociedade, entendendo-se que a liberdade dos cidadãos exigiria um especial esforço para fazer prevalecer uma simbiose equilibrada entre os aspectos económicos e a análise cultural e histórica.
O NAVIO CORSÁRIO “GENERAL ARMSTRONG”
Para além das considerações teóricas, Duarte Ivo Cruz ilustra a faceta diplomática de Garrett com um exemplo muito curioso, onde se nota a ligação entre a teoria e a prática. Estamos diante de uma reminiscência da guerra anglo-americana de 1812-1814 que viria repercutir-se, quarenta anos passados, na acção do Ministro dos Negócios Estrangeiros Almeida Garrett, entre Março a Agosto de 1852, depois da Regeneração. O episódio resume-se ao seguinte: no longínquo mês de Setembro de 1814, a esquadra inglesa, a caminho da Jamaica, cruzou-se com o brigue corsário americano ‘General Armstrong’ no porto da Horta, no Açores. Sob o pretexto de haver um ataque ou uma provocação por parte do navio norte-americano, os ingleses atacam-no e afundam-no. Ora, sendo Portugal um território neutral, iniciou-se uma discussão internacional acesa sobre quem deveria indemnizar pelos prejuízos causados, se os ingleses, se os corsários americanos, por acção, se os portugueses, por omissão. O longo processo de negociação culminou numa arbitragem, e o governo português defendeu primeiro que o árbitro fosse o rei da Suécia. No entanto, os Estados Unidos não aceitaram essa indicação e apontaram para o Presidente da República da França, Luís Napoleão Bonaparte, o futuro Imperador Napoleão III. Depois de diligências discretas em Paris, o governo português aceitou a designação. E o dramaturgo, enquanto ministro, viria a ter de conduzir a difícil operação de defender e preservar a posição de Portugal. Garrett deu então o impulso fundamental à solução do problema, graças a uma memória do Visconde de Santarém. E tudo culminou numa sentença favorável a Portugal, emitida poucos meses após a saída do escritor do Ministério, mas decisivamente influenciada pelo pragmatismo e experiência de Garrett, que a pesquisa ora dada à estampa bem revela.
E ouça aqui as minhas crónicas na Renascença.
Guilherme d’Oliveira Martins