UM LIVRO POR SEMANA
De 11 a 17 de Junho de 2007
“Em Busca da Lisboa Árabe” da autoria de Adalberto Alves (CTT, Correios, 2007) é um roteiro que permite tomarmos contacto com as reminiscências árabes de uma cidade cuja história só pode ser compreendida pela consideração dessa influência marcante. E é muitas vezes surpreendente verificar em que medida encontramos marcas e sinais que permitem demonstrar como o “cadinho” cultural português abarca uma grande diversidade de factores e elementos, entre os quais avultam as componentes cristã, muçulmana, moçárabe e judaica. Sem simplificações abusivas, a verdade é que essa convergência de várias culturas pode explicar, como disse Jorge Dias, a nossa hospitalidade e a nossa abertura… Parta-se à descoberta dessas impressões digitais, e veja-se como Lisboa se torna uma cidade multifacetada, aberta e cosmopolita, apesar das intolerâncias e dos momentos de cegueira e facciosismo. Lisbûna tornou-se arabizada na sequência de um processo longo e complexo. E se é certo que muitas das fontes que nos ajudariam a compreender melhor cerca de oito séculos de presença árabe ininterrupta na cidade (714-1147 e 1147-1496) foram destruídas pela Inquisição, a verdade é que podemos ainda descobrir importantes referências que a obra estuda. Trata-se de acompanhar a história da presença política árabe-muçulmana, desde o Emirato na órbita do Califado de Damasco (até 756), do Emirato independente de Córdova (756-929), do Califado de Córdova (929-1027), até aos primeiros reinos taifas, à decadência e à afirmação do Califado Almorávida (1028-1147). E foi este período de fragmentação que coincidiu exactamente com a “reconquista cristã”, que correspondeu ao progressivo retrocesso territorial do Al-Andalus, momentaneamente interrompido pela esperança almorávida (sobretudo aquando da Batalha de Zalaca, 1086), que, no entanto, conduziu à perda de autonomia do Al-Andalus convertido em mera província sob domínio almorávida. Os cristãos assumiram ainda fugazmente o domínio de Lisbûna, mas depois perderam-no por cerca de quarenta anos. Ao longo da obra, e para além do circunstanciado percurso histórico, deparamos com um interessante retrato da cidade a partir das fontes. Os mundos das palavras e das culturas encontram-se e ajudam-nos. Veja-se o rol das palavras para designar as principais frutas da cidade: albaricoque (al-barqûk), alperce (al-barj), laranja (al-nâranj), limão ( laymûn), romã (rumman), tâmara (tamrah) e figo (tîn). Atente-se ainda no arroz (al-ruzz) ou na celebérrima alface (al-hass), símbolo dos lisboetas… E os almocreves (al-mukkâb) e arrais (al-rais-s), moçárabes, mouros e mouriscos eram os que asseguravam o abastecimento da cidade. A grande cidade do século XVI, definitivamente destruída em 1755, baseou-se na antiga Lisbûna, sobretudo na zona a leste do esteiro do Tejo, dentro da cerca moura, em redor da Alcáçova (al-qasbâ, o Castelo de S. Jorge), com uma grande mesquita e uma importante zona urbana (Alfama ou Al-hamma). Como é bem de ver tudo soa a muito familiar, já que ainda hoje usamos muitas dessas palavras e dessas designações. A cidade foi marcada pelo campo e pelo mar, havia agricultores e pescadores, produção de fruta e cereais e construção de navios. E não pode deixar de se recordar, sob a invocação do afamado geógrafo de Ceuta al-Idrîsî, do final do século XI, a Lenda dos Aventureiros de Lisbûna, segundo a qual teria havido antes verosímeis navegações até às Canárias de intrépidos navegadores da cidade do Tejo. Adalberto Alves, de modo atraente, fala-nos ainda de uma cidade de saber, de espiritualidade e de tolerância, merecendo referência intelectuais como Ibn Muqânâ (o poeta nascido em Alcabideche), Ibn Isma’il (também conhecido como al-Taytal), Ibn Sawwâr e Ibn Ibrâhim Al-Fihrî, o vizir que “era a alma da região e o seu salão em Lisbûna ponto de encontro da prosa e da poesia”. É inesgotável a matéria que podemos encontrar e as novas pistas para outras investigações e peregrinações. Na célebre carta de Raul a Osberto de Bawdsey lê-se: “Lisbûna é o mais importante entreposto comercial de toda a África e de uma grande parte da Europa, tendo sessenta mil homens que pagam tributos, fora os que não estão sujeitos a tal pagamento”. A cidade é apetecível. Os combates de 1147 foram duros e renhidos. Segundo Borges Coelho, a conquista “constituiu uma catástrofe para a cidade, uma das maiores, senão a maior, se exceptuarmos o terramoto de 1755”. No entanto, depois desse momento, a presença moura manteve-se. Houve muçulmanos expulsos para os arrabaldes, mas também houve a emergência dos mouros forros (sendo “garantida aos mudéjares – muçulmanos submetidos à soberania cristã – não só liberdade e protecção, como também as condições do seu exercício, ou seja, o direito a Foro próprio e a garantia de não serem importunados, fosse por cristãos, fosse por judeus”). A Mouraria era o espaço físico destinado à comuna dos mouros forros, que tinham de se sujeitar a regras de diferenciação (traje e tonsura, ostentação do crescente) e a tributos e atributos, que lembravam a condição de vencidos. No entanto, parece ter havido uma apreciável tolerância entre as comunidades cristã e moura, que até permitiu em diversas ocasiões aligeirar as regras mais estritas. Havia, aliás, mouros que exerciam as funções de oficiais do rei, é certo que mais honoríficas do que outra coisa, além de beneficiarem de doações e benefícios do monarca. Tudo isto ocorreu até ao momento trágico de Dezembro de 1496, data em que foi assinado o Édito de Expulsão dos Judeus e Mouros Forros… A partir de então na cidade em geral, e na Mouraria em particular, procurou apagar-se todo o vestígio muçulmano ou arábico e os mouros conversos passaram a ser conhecidos como “mouriscos”, encarregando-se de tarefa menores na cidade… Eis um tema inesgotável a merecer toda a nossa atenção…
Guilherme d’Oliveira Martins